O dia 18 de maio é o Dia Nacional do Combate ao Abuso e Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes. Nesta mesma data, em 1973 na cidade de Vitória-ES, a menina Araceli Cabrera Sanches , de 8 anos, foi raptada, espancada, estuprada, desfigurada por ácido , morta e por fim
teve seu corpo descartado num terreno baldio . O crime bárbaro jogou luz sobre o tema do abuso sexual infantil no debate nacional. De lá para cá, a legislação, as políticas públicas e consciência sobre o problema avançaram, mas é consenso que ainda há muito a se avançar.
Eu vou lhes contar a minha história na esperança de que ela possa lhe inspirar a também engajar-se no combate ao abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes assim como na identificação destes. Escrever sobre isso exige coragem. Interrompo a escrita e tomo um ar para não vomitar.
Eu sofri abuso por volta dos 5 ou 6 anos. Meu tio aproveitava as festas da família ou almoços na casa da minha avó e me levava para um canto e me fazia tirar a roupa e mostrar a genitália.
Me tocava e ria. Meu primo, um pouco mais novo do que eu, passava pelas mesmas coisas, às vezes junto comigo. No começo eu obedecia, mas depois me rebelei. Não aceitava ele sequer chegar perto de mim. Quando ele me chamava para tirar a roupa, eu gritava enfurecido e corria. Isso foi nos anos 80 e tudo era entendido apenas como uma brincadeira sem graça. Ele ainda dizia: “Seu primo tira a roupa sem problemas”. Zombava por eu me negar a ceder. Ele continuou fazendo isso com meu primo.
Mais tarde, na pré-adolescência, um outro tio cometeu abusos contra esse mesmo primo.
Tocava onde não devia, como o primeiro. Meu primo se irritava, gritava, xingava, chorava.
Mais uma vez tudo era tratado pela família como uma brincadeira inconveniente. Ele tentou fazer isso comigo, mas eu sempre o evitava. Cheguei a bolar um plano com meu primo: armar uma briga sobre o tema na frente da minha tia, sua esposa, para que, constrangida, ela fosse obrigada a repreendê-lo. Quando falávamos com nossos pais, eles apenas diziam para sair de perto e esquecer.
Eu só reconheci o que passei como abuso sexual quando me tornei adulto. Meu primo passou pela mesma experiência, mas ele não significou isso como abuso. Aparentemente ele não manteve traumas destas situações. Talvez não se lembre.
Então quero te dizer algumas coisas:
1. Meninos também sofrem abuso sexual.
Como pais, estamos muito empenhados em proteger e ensinar nossas filhas a evitar e reconhecer o abuso, mas negligenciamos nossos meninos. Não me recordo de meus pais me ensinando sobre como reconhecer uma violência sexual, mas somente de evitar estranhos. Também há poucos relatos na mídia sobre violência sexual contra meninos. Sou capaz de me lembrar do caso conhecido como “Meninos Emasculados do Maranhão”, em que 28 meninos foram mortos entre 1991 e 2003 depois de terem
as genitálias extirpadas. Em 2018, tivemos a revelação dos casos de abuso sexual na
ginástica artística masculina, envolvendo mais de 40 relatos de abuso, incluindo atletas de renome nacional.
2. O abuso não envolve penetração necessariamente
Para se configurar um abuso sexual, basta a utilização do corpo de uma criança por um adulto para fins de sua satisfação pessoal. No meu caso, não houve penetração nem toquei o corpo do abusador.
3. Nunca é brincadeira
Você se divertiria com alguém te tocando inadequadamente? O mesmo vale para uma criança.
4. Educar a criança a reconhecer o abuso é sempre a melhor forma de prevenção
A criança nunca ficará tempo integral com os pais. É preciso que ela saiba reconhecer o abuso e que tenha a liberdade de contar sobre suas angústias e desconfortos para os pais.
Um relato nunca deve ser interpretado como mentira ou fantasia. Há técnicas sérias e profissionais capacitados para abordar a criança sobre o tema e confirmar o fato.
5. O abuso normalmente é cometido por pessoas de confiança e em lugares considerados seguros pela família
O abusador precisa de uma relação de confiança com a criança e um ambiente seguro para fazer os seus atos. Um estranho dificilmente conseguiria se aproximar do seu filho e levá-lo para um lugar reservado. Portanto, é preciso manter a atenção também nestes
ambientes considerados seguros como casa, casa de parentes, escola, igrejas,
vizinhança, etc.
6. A culpa nunca é da vítima
É comum ouvir que a vítima se insinuou, quis o contato ou falhou em evitar o abuso. É um erro supor que uma criança tem a capacidade aprimorada de julgamento ou de defesa.
Culpar a vítima só torna pior a sua situação individual e torna ainda mais difícil a denúncia.
7. Contar para a família ou denunciar é muito difícil
Muitas crianças não contam porque são ameaçadas ou têm vergonha. No meu caso, o fato sequer era entendido como abuso à época. Ademais, há chances de o denunciante ser tratado como mentiroso ou ser julgado. Isso torna o cenário pior. Outra coisa comum a se ouvir é que “se a criança não denunciou na época é porque gostou”, o que para mim equivale a um atestado de estupidez, afinal quem gosta de abuso? Também temos a cultura do deboche no Brasil. Se já zombaram de mim por ter sido assaltado ou
agredido na rua, o que não diriam se soubessem do abuso? Veja que eu não assinei o texto. A violência continua no deboche. No caso da ginástica artística brasileira, os atletas trocaram de clube por causa dos abusos e o novo técnico, ciente dos fatos, zombava deles.
8. As consequências são para sempre
Isso não é uma metáfora. As consequências são sim para sempre. No meu caso, desde criança, eu desenvolvi uma aversão a qualquer toque masculino. Não deixava médico me examinar e não jogava esportes de contato físico como futebol. Tinha pânico de ficar no time “sem camisa” na aula de educação física. Ainda hoje se eu ganho um abraço, fico duro como um poste e travo o maxilar. É uma reação involuntária. Mas cada um tem sequelas diferentes.
9. A visibilidade da vítima é um direito e não uma obrigação
Há pessoas que querem expor a violência sofrida na mídia, na internet, nos fóruns, etc. Há pessoas que preferem o silêncio. Há diferentes pessoas, diferentes traumas e diferentes formas de lidar com a própria história. Apenas respeite isso. Sua opinião não interessa.
10. O que dizer a uma pessoa que foi vítima de abuso?
Não ria, não deboche, não critique, não peça detalhes, não pergunte porque ela não contou antes, não diga que isso a ajudou a ser a pessoa maravilhosa que é hoje. Apenas diga que sente muito, que se solidariza com ela e pergunte se ela deseja algum tipo de ajuda médica, psicológica ou legal. Se prometer ajudar cumpra. Não conte a ninguém.
11. Os serviços públicos de proteção a vítimas de abuso sexual no Brasil funcionam
Existe uma rede de proteção e garantia de direitos no Brasil que funciona bem no Brasil.
Vítimas ou familiares podem procurar a polícia civil, os serviços de saúde, o ministério público, órgãos de defesa dos direitos humanos, o conselho de direitos humanos, o conselho tutelar e os equipamentos de assistência social a exemplos dos CREAS. Esses órgãos se articulam e disponibilizam profissionais de diferentes áreas para lidar com o caso conforme suas necessidades. Tudo é feito em sigilo e sem necessidade de exposição repetida da vítima. O Disque 100 do Ministério dos Direitos Humanos também é uma opção segura e eficiente.
*o autor do texto solicitou sigilo sobre seus dados pessoais
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Muito bom o texto pois gera consciencia que este problema tambem pode afetar homens, meninos e velhos por todo o mundo! Continuem com o lindo trabalho de voces de debater temas importantes com um toque extra de inteligencia e olhar critico! Abracos!
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