“Mateus, senta bonitinho aí no seu lugar que o ônibus já vai andar” – diz D. Josefina.
“Bernardo, para de cutucar a Luana” esbraveja ela. E assim vão os 30 km até a escola rural.
Desce um, desce outro … e ela percebe que um dos gêmeos não veio hoje.
“João, onde tá seu irmão?” . Os olhos da cantineira vão às lágrimas quando o menino franzino, de roupa rala e sapato gasto relata que a panela com gordura quente teria virado no braço de Pedro. ” Num preocupa não que minha vó tá cuidando dele”. Como o pai estava preso e a mãe morava em outra cidade com o marido e outros quatro filhos, os irmãos eram criados pela avó materna.
Mexe o arroz, tempera o frango, corta o tomate… e o pensamento dividido entre a queimadura do menino e o remédio caro que a aluna com intolerância à proteína precisava comprar.
Enquanto varria a sala, a inquietude agora vinha dos três filhos que moravam fora: o dinheiro que precisava para a parcela do cursinho de uma, a malandragem do caçula, que não fazia o dever de casa e estava tirando notas baixas e a do meio, que estava morando com a madrinha em BH, esse ano, para estudar num colégio melhor. Provavelmente, o salário mínimo não seria suficiente para pagar as duas mensalidades, já que o ordenado do marido era todo para pagar a construção da casinha deles e ajudar a manter o comércio: uma lanchonete que funcionava nos fins de semana e sofria com as vendas à prazo.
No portão da saída, ela orienta:
“Olha, o Marcos não pode comer salgadinho e refrigerante na hora do recreio. Não faz bem. Vou ajudar ele a gostar do lanche da escola. Eu cuido. Pode deixar”. E foram incansáveis semanas de briga até extinguir os lanches não saudáveis. Fazia a dança das maças, com três ou quatro, a alface voava para animar mais uns cinco e assim foi a conquista das frutas e verduras.
Com a proximidade do aniversário de Amanda era difícil para D. Josefina, que não era nutricionista e tinha pouco estudo, pensar quais alimentos continham proteína para evitar na festa. Ela ficou chocada ao descobrir que brigadeiro e bolo não poderia fazer, não com os ingredientes convencionais. Mas não poderia decepcionar a menina que era tão criança para entender as restrições a que estaria sujeita. Lá foi ela pesquisar: falou com um, perguntou para outro, ligou para a prima da sobrinha da professora da sala 3… até que conseguiu descobrir todos os componentes que precisaria para fazer uma comemoração aparentemente normal. Foi um sucesso. A mãe não sabia como agradecer pela felicidade da filha.
“Mãe, me preocupo com você todo dia na estrada. Pede para ficar na escola da cidade” – diz uma das filhas.
“Não posso. As crianças precisam de mim. Quem vai olhar por elas?” – confidencia.
Entre um cliente e outro na casa de lanches, ela corre igreja para ver se ainda pega o final da missa do domingo. Chega na consagração de N. S. Aparecida e é bem nas mãos dela que entrega todos os seus: o marido, os filhos e as crianças da escola.
Yhara Oliveira
Mãe, bancária, jornalista, casada, gosta de slackline, São Paulo, artes, vinhos e mesa farta com pessoas queridas. Sonha em conhecer muitos povos e culturas diferentes.
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Que texto lindo!
Começar o dia com o coração já quentinho é tão gostoso!
Achei esse texto de uma sensibilidade sem tamanho, aliás como eu gosto dos textos daqui! Sempre me fazem refletir!
Um beijo grande!
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