Há coisa de 15, 20 anos, eu era Fernanda, estudante destacada, amiga, jornalista de alta produtividade, namorada. Escrever tudo o que eu era não caberia em poucas linhas. Hoje, quase tudo se resume a Fernanda é mãe. Sob vários aspectos ficou mais fácil. Mais fácil saber qual é a prioridade, por exemplo. Só que, ao mesmo tempo, não existe nada mais difícil do que carregar, dia e noite, faça chuva ou sol, a responsabilidade de criar e educar alguém. Sempre sob uma enxurrada de dúvidas. A principal delas: estou fazendo a coisa certa?
Dentes mal escovados, letra garrancho no dever de casa, falta de cuidado com o brinquedo, birra pra conseguir o que quer, cocô fora do vaso, dedos e olhos que não desgrudam de um celular. Não é possível que eu esteja fazendo a coisa certa.
Já ouvi muitas vezes que mães não enxergam os defeitos dos filhos. E eu enxergo tantos. Estou fazendo tudo errado e ainda sou desnaturada. Será? A outra opção diz que as noites mal dormidas, o excesso de preocupação com o presente e o futuro, e as cobranças descabidas por uma perfeição que não existe fazem a gente ver as coisas com uma lente que tudo distorce. A lente do adulto sisudo.
Os dentes mal escovados e a letra garrancho são de um menino em processo de conquistar sua autonomia. O brinquedo quebrado e a birra são de uma menina destemida a explorar o mundo e testar seus limites. O cocô escapulido e o vício na telinha são de um bebê amoroso que não perde uma oportunidade de chamar atenção e oferecer carinho.
Se coloco a lente da criança que eu fui, vejo tudo mais colorido. Vejo crianças que brincam, que erram, aprendem e ensinam, que valorizam estar com a família, que se importam com as pessoas e com o mundo lá fora. Que derramam suco na mesa do café da manhã enquanto contam suas histórias animadas, que bagunçam a casa em busca de matéria-prima pra suas aventuras, que fazem um monte de barulho enquanto se agarram e abraçam na cama antes de dormir e sonhar com os anjos.
A criança feliz que eu fui, então, saúda as crianças felizes que meus filhos são. E passo a desejar que eles nunca se tornem adultos sisudos como eu me tornei. O que me faz lembrar da minha mãe, a adulta sisuda que um dia, provavelmente, também desejou que eu nunca deixasse de ser aquela criança. Ela, que agora volta a ser uma criança feliz ao lado dos netos.
Eu me fiz mãe mergulhando em incertezas e, ao mesmo tempo, consegui entender melhor um monte de coisas complexas. Consegui entender melhor a minha mãe, as outras mães e também quem não é mãe. Mas toda a dor – das crianças que não são felizes hoje e dos adultos que não foram crianças felizes ontem – também passou a doer em mim, depois que me fiz mãe.
Assim, entendi que a expressão ‘a dor e a delícia de ser mãe’ não se refere a experiências individuais. Vivenciar a maternidade diz respeito a mim, aos meus filhos, à minha mãe e ao mundo inteiro. Na dor e na delícia.
Dedico este texto aos meus três filhos e às minhas três mães, que triplicam a minha delícia!
Fernanda Marques.
Jornalista carioca hoje no planalto central, quase entrando nos ‘enta’, mãe do Victor, da Cecília e do Vicente.
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